domingo, 10 de outubro de 2010

Cântico Negro

" `Vem por aqui!´- disem-me alguns com olhos doces,
estendendo-me os braços e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem: ´Vem por aqui!
Eu olho-os com os olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansanços)
e cruzo os braços
e nunca vou por ali...
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Não sei por onde vou.
Não sei para onde vou.
- Sei que não vou por aí!"

José Régio (poeta português)

Para Refletir

Drummond dizia: "Sejamos pornográficos, docemente pornográficos"
(Parece que aceitaram exageradamente seu convite, e a coisa acabou em "grosseiramente pornográficos".

Vinicius de Moraes ou Rubem Braga dizeram em tom de elegia ipanemense:
Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados.

"Elegia ao primeiro amigo" Vinicius de Moraes

Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente.
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma.
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.
Se me entediam, abandono-as delicadamente, despreendendo-me delas com uma doçura de água.
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim.
desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível.
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
mas com singular delicadeza. Não sou bom
nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
como um lobo.

(Está aí:porque somos ferozes precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados, que o sejam ferozmente delicados.
Houve um tempo em que se era delicado. E. Rimbaud, que aos dezessete anos já tinha feito sua obra poética, é quem disse um dia: "Por delicadeza, eu perdi minha vida".
Intrigante isto.
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Tudo é questão de estilo.
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Vivemos numa época em que nos filmes americanos os amantes se amam violentamente, e em vez de sussurrarem "I love you" arremetem um virótico "Fuck you".
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Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou o seu contato com os índios brasileiros: "Morrer se preciso for; matar, nunca".)

(Trecho da crônica "Tempo de delicadeza" - Affonso Romano de Sant´Anna)




Cadê o papel - carbono?

Outro dia tive saudade do papel - carbono. E tive saudade também do mimeógrafo a álcool. E tive saudade da velha máquina de escrever. E tive saudade de quando, no dizer de Rubem Braga, a geladeira era branca e o telefone era preto.
Os mais jovens nem sabem o que é papel - carbono ou mimeógrafo a álcool. Mas tive saudade deles, ou melhor, de um tempo em que eu não dependia eletronicamente de outros para fazer as mínimas tarefas. Uma torneira, por exemplo, era algo simples. Eu sabia abrir uma torneira e fazê-la jorrar água. Hoje tomar um banho é uma peripécia tecnológica. Hoje até para tomar um elevador tenho que inserir um cartão eletrônico para ele se mover. Claro que tem o Google, essa enciclopédia no computador que facilita as pesquisas (para quem não precisa ir fundo nos assuntos), mas muita coisa me intriga: por que cada aparelho de televisão de cada casa, de cada hotel tem um controle remoto diferente e a gente não consegue usá-los sem pedir socorro a alguém?
Olha, tanta tecnologia!... Mas além de não terem descoberto como curar uma simples gripe, os elevadores dos hotéis ainda não chegaram a uma conclusão de como assinalar no mostrador que letra deve indicar a portaria.Será necessária uma medida provisória do mpresidente para uniformizar tal diversidade analfabética?
Outro dia , li que houve uma reunião em Baku, lá no Azerbaijão, congregando cérebros notáveis para decifrarem nosso presente e nosso futuro. Pois Jean Baudrillard* andou dizendo, com aquela facilidade que os franceses têm para fazer frases que parecem filosóficas, que o que o que caractyerizaq essa época que está vindo por aí é que o homem, leia-se corretamente homens e mulheres, ou seja, o ser humano, foi descartado pela máquina. (Isso a gente já sabe quando tenta ligar para uma firma qualquer e uma voz eletrônica fica mandando a gente discar isto e aquilo e volta tudo a zero e não obtemos a informação necessária.)
Deste modo estão se cumprindo dois vaticínios. O primeiro era de um vate mesmo - Vinicius de Mortaes, que naquele poema "Dia da Criação", fazendo considerações irônicas sobre o dia de "sábado" e os desígnios divinos, diz: "Na verdade, o homem não era necessário", É isto, já não somos necessários.
E a outra frase metida nessa encrenca é aquela da Bíblia, que dizia q o "sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado". Isso foi antigamente. Pois achávamos que a máquina havia sido feita para o homem, mas Baudrillard, as companhias áereas e as telefônicas mais os servidores de informâtica nos convenceram que "o homem é que foi feito para a máquina". Ao telefone só se fala com máquinas, e algumas empresas - esses servidores de informática - nem seus telefones disponibilizam. Estou, por exemplo, há quatro meses tentando falar com alguém no "hotmail" e lá não tem viv´alma, só fantasmas eletrônicos sem rosto e sem voz.
Permita-me, eventual e concreto leitor, lhe fazer uma pergunta indiscreta. Quanto tempo diariamente você está gastando com e-mails? Quanto tempo para apagar o lixo e responder bobagens? Faça a conta, some. Vai ficar estarrecido.
Drummond certa vez escreveu: "Ao telefone perdeste muito tempo de semear". Ele é porque não conheceu a internet, que, tanto quanto o celular, usada desregradamente é a grande sorvedora de tempo da pós-modernidade.
Por estas e por outras é que estou pensando seriamente em voltar às cartas, quem sabe ao pergaminho. E a primeira medida é reencontrar o papel-carbono.
- Cadê meu papel- carbono?


*Filósofo francês, crítico da sociedade de consumo e um dos teóricos da pós-modernidade. Jean Baudrillard (1929-2007) publicou cerca de cinqüenta obras, entre elas (1970) e A sociedade de consumoSimulacros e simulação (1981). (N.E.)


Texto de Affonso Romano de Sant´Anna, um dos grandes poetas brasileiros, tem, nos últimos anos, brindando o público com deliciosas crônicas publicadas em vários órgãos da imprensa no país. No livro "Tempo de delicadeza" da Coleção L&PM Pocket, estão reunidops 47 textos em que o cronista - herdeiro literário de Rubem Braga e Fernando Sabino - delicadamente trata de assuntos corriqueiros da vida com o olhar demorado e singular da poesia. Um prato cheio para os fãs do autor e para os admiradores do melhor da crônica brasileira.

Tempo de delicadeza
Affonso Romano de Sant´Anna
Coleção L&PM Pocket, vol. 616
www.lpm.com.br